O VAZIO AZUL DE YVES KLEIN EM DEREK JARMAN

Na década de 1940, numa ida à praia com os amigos Armand e Claude Pascal, Yves Klein (Nice, 1928 – Paris, 1962) declara o céu como a sua primeira obra de arte. Anos mais tarde, numa viagem a Assisi, Itália, Klein descobre os frescos de Giotto na Basílica de S.nFrancisco. São estes os dois grandes motivos para que anos depois, no final da década de 1950, Yves Klein patenteie o seu próprio tom de azul, ao qual chamou International Klein Blue


 
International Klein Blue - pigmento de Yves Klein 
Fonte: Widewalls


IKB, um simples pigmento azul ultramarino com extrato de petróleo, torna-se então o grande protagonista das obras de Klein. São inúmeras as séries em que o azul elétrico do artista figura numa posição central: Anthropometries, Sponge Works, Monochromies, entre outras. Este conjunto de obras consagra o auge da carreira artística de Klein, designada pelo próprio como "Blue Era".

Todas as séries de Yves Klein são individualmente importantes para que se consiga desmistificar a sua filosofia da arte. Cada uma delas permite-nos decifrar uma nova vertente da sua teoria. Contudo, considero as suas monocromias as mais elucidativas do seu modo de viver a arte e, em especial, o seu azul, IKB. 


 
Yves Klein, Untitled Blue Monochrome (IKB 266), 1957
Fonte: artnet

As monocromias, tal como o nome indica, consistem em telas de uma só cor. Com esta série, o artista francês procura libertar a cor, elemento que considera puro, da pressão e do condicionamento das linhas e das formas. Para o artista, a representação figurativa é limitadora. Tendo em conta que a realidade não é passível de ser representada, e de que cada representação é uma distorção do real, Klein considera que é através da cor que se consegue pressentir a essência das coisas, aquilo que é imaterial mas omnipresente, no fundo, a verdade absoluta.

Derek Jarman (Northwood, 1943 – Londres, 1994), realizador conhecido por retratar o homoerotismo, a violência e a comunidade queer nas suas obras, um ano antes de morrer, dedica-se a quebrar estereótipos face às vítimas do vírus HIV e da SIDA, ao mesmo tempo que ele próprio sofre com a doença,  já num estádio bastante avançado.
 
Blue, o seu último filme, consiste em 75 minutos de filme sem imagem, ou melhor, de imagem azul aparentemente estática. De forma a orientarmo-nos no tempo e no espaço, são-nos dadas vozes, incluindo a do próprio realizador, efeitos sonoros e música. O azul é também um elemento a considerar no que toca à perceção da narrativa que nos vai sendo contada. 
O espetador vai tomando conhecimento de alguns episódios autobiográficos e outros de uma personagem chamada Blue. Esta personagem pode ser entendida como alter-ego do realizador ou como figura representante de todas as vítimas do vírus HIV e da SIDA.

 
Derek Jarman, Blue, 1993
Fonte: Tate
 
Jarman opta por não usar qualquer tipo de imagens figurativas, de modo a não alimentar os estigmas e estereótipos que, na altura, já se formavam em torno das vítimas desta doença, oferecendo-nos, então, um ecrã completamente azul. A visão do realizador já se encontrava bastante debilitada na altura em que realizava o filme, e, curiosamente, já só conseguia distinguir a cor azul. Deste modo, ao colocar o espetador perante um ecrã azul durante 75 minutos, dando-lhe apenas o que ouvir, Jarman pretende colocar-nos no seu lugar, no lugar do doente, invertendo papéis, quebrando estigmas. 

O azul que o realizador inglês opta por usar é muito próximo ao azul de Klein. É impossível afirmar categoricamente que o azul é o mesmo, tendo em conta que cada reprodução do filme é diferente, fazendo com que a qualidade da imagem e até mesmo a cor variem de versão para versão. 
Contudo, há algo que me permite afirmar que este filme foi pensado, de algum modo, com o nome de Yves Klein em mente: antes de decidir que o título do filme seria Blue, o realizador pensou em International Blue, o que faz ressaltar à memória o famoso International Klein Blue
Para além de tentar representar de forma real e honesta o que seria a vida de alguém com SIDA, Jarman faz de Blue um hino à arte e à própria vida, fazendo diversas ilações sobre como perspetiva o mundo e teoriza a arte. E, mais uma vez, encontro aqui pontos de contacto entre o realizador inglês e Yves Klein.
 
A ideia da «tirania da imagem» à qual Jarman faz menção inúmeras vezes ao longo do filme é equivalente à ideia da tirania das linhas e das formas a que Klein pretendia fugir. Ambos procuram livrar-se das amarras da representação figurativa, pois, defendem, esta nunca faz jus àquilo que procura representar. 
Tal como acontece nas obras de Klein (especialmente em Sponge Works), em Blue a cor (em específico, o azul) também é vista como algo a absorver. E se em Klein é uma ideia sugerida, em Blue não temos outra opção senão deixar-nos impregnar pelo azul que é tudo aquilo que nos resta, tal como a Jarman, que, quase cego, não vê outra coisa.

 Yves Klein, Untitled Blue Sponge Sculpture (SE 168), 1959
 Fonte: Yves Klein

O azul surge, assim, como um refúgio para ambos, uma viagem a outra realidade, que assusta ao mesmo tempo que entusiasma. Se é frio, é porque se viaja sozinho, mas não há nada mais confortável do que a serenidade de chegar ao fim e descobrir que a matéria é e sempre foi indispensável. O vazio que sempre fica, o vazio azul que sempre permanece, é apenas aparente. Ele guarda nele todas as possibilidades imagináveis de uma mesma realidade. É a esperança de se ser imortal numa outra dimensão.

Para saber mais podem consultar ainda

Excerto de Blue (youtube) 
Yves Klein (site oficial)

  Inês Granja

Comentários

  1. Que post tão inspirador, Inês, grata pela partilha do filme (que desconhecia) e pelo inteligente diálogo estabelecido entre Klein e Jarman... Comentando as suas considerações finais, não resisto a citar "Quási", de Mário Sá Carneiro — "Um pouco mais de azul - eu era além".

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