"A Vitória de Samotrácia", de Ana Luísa Amaral

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Passagens: Poesia, Artes Plásticas é uma das minhas antologias poéticas favoritas, à qual regresso com muita regularidade. Este livro é composto por textos de diversos autores que nos remetem a certos lugares, artistas e obras plásticas da história da arte e, segundo dita a contracapa, possui “uma série de textos onde a relação da poesia com a pintura se estabelece de uma forma menos referencial e mais problematizante, levando-nos a reflectir sobre a natureza das fronteiras entre a expressão plástica e a expressão poética”.

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A VITÓRIA DE SAMOTRÁCIA

Se eu deixasse de escrever poemas em
tom condicional, e o tom de conclusão
passasse a solução mais que perfeita,
seria quase igual a Samotrácia.

Cabeça ausente, mas curva bem lançada
do corpo da prosódia em direcção ao sul,
mediterrânica, jubilosa, ardente, leopardo
musical e geometria contaminada
por algum navio. A linha de horizonte:

qualquer linha, por onde os astros morressem
e nascessem, outra feita de fio de fino aço,
e outra ainda onde o teu rosto me contemplasse
ao longe, e me sorrisse sem condição que fosse.

Ter várias formas as linhas do amor: não viver
só de mar ou de planície, nem embalada
em fogo. Que diriam então ou que dirias?

O corpo da prosódia transformado em
corpo de verdade, as pregas do poema,
agora pregas de um vestido longo, tapando
levemente joelho e tornozelo. E não de pedra,
nunca já de pedra. Mas de carne e com
asas –
Ana Luísa Amaral

Neste poema que apresento, Ana Luísa Amaral estabelece uma relação poética pessoal com a escultura Vitória da Samotrácia (acima reproduzida). A descrição forte e crua da escultura, embelezando-a e romantizando-a, fundamenta o paralelismo com a própria escritora, que ajusta a obra a si mesma — “E não de pedra, / nunca já de pedra. Mas de carne e com / asas –”. Para mim, este é dos poemas mais belos desta antologia, apresentando uma reflexão subjetiva sobre a arte poética.

Madalena Leitão

Comentários

  1. Grata pela partilha, Madalena. A Assírio & Alvim acabou de lançar 'Ágora', um livro da Ana Luísa Amaral apenas com poemas ecfrásticos , i.e., baseados no diálogo descritivo com obras de arte, neste caso pintura.

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