Consciência(s) do eu
Vou propor uma leitura comparativa de três obras, reproduzidas abaixo, que julgo expressarem a tensão dos seus autores.
Bill Viola, Surrender, 2001. Fonte
Vincent
Van Gogh, Bedroom at Arles, 1889. Fonte
No quarto de
Van Gogh, os objectos (quadros, janela, a cama e as paredes) geram um efeito
deformado, como se o quarto fosse explodir de ar comprimido e sustido. Ao olhar
o quarto daquela maneira, Van Gogh pinta como se se acusasse, em desespero. A
materialização do quarto é objecto duma identidade insuportável. Van Gogh sente
uma necessidade de expirar o ar que lhe enche os pulmões. O ar que o oprime
precisa de ser exalado. Nesta tensão, o respirar, seria o acto imediato; mas
Van Gogh está impedido de respirar. Um nódulo impertinente leva-o a sufocar. O
quarto é retratado no momento anterior a perder os sentidos – a respiração
ansiada não tem lugar na pintura. O autor e habitante do quadro elabora, antes,
um auto-retrato que indica, também, toda a vida num instante sem futuro: um
acumular das noites em que o eu se torna equivalante ao quarto do qual não se vislumbra
saída. A existência está adiada. Van Gogh não consegue deixar de sofrer. Pinta
em vez de respirar.
Bill Viola, Surrender, 2001. Fonte
Em Bill Viola, o indivíduo replicado em várias imagens, debruça-se sobre água, perdendo a
solidez da matéria humana. Na água, a imagem reflectida devolve-lhe uma
identidade destroçada. O homem aparece desmaterializado, apenas reflexo. De rosto contorcido, Viola
tenta assim libertar-se. O seu percurso vai da força física à volatilidade das emoções. Quanto mais se observa
desfocado maior é o vício em se reflectir. Ele não se vê a si mesmo, mas ao seu
sofrimento angustiado. A realidade passa a ser a imagem a que não pode escapar.
O momento é o reflexo deformado da totalidade da sua existência, mas
desconhece-se porque sofre ele, e desconhece-se se esta dor o vai perturbar por
muito tempo. Há no reflexo uma incapacidade de expressão verbal. A imagem é
mais eloquente do que quaisquer palavras.
O protagonista da novela a Metamorfose, Gregor Samsa,
assimila estes dois auto-retratos – nele está a urgência de respirar de Van
Gogh, e simultaneamente a volatilidade da existência transformada em emoção.
Samsa vê-se
deformado e pode dizer-se que a diferença entre a narrativa por ele protagonizada e as duas obras anteriormente consideradas está no tempo que dura o que se observa. Van Gogh condensa a totalidade no instante; o
reflexo de Viola dura um momento mais intenso do que a longevidade, um
instante análogo à vida eterna, o espaço em que se mantiver o
olhar.
Gregor Samsa está de facto modificado. O seu corpo encarna a mudança, mas mantém a
materialidade de um ser vigoroso. Samsa escapou à desmaterialização, ele está
vivo mas já não possui o mesmo corpo – tornou-se definitivamente outro e monstruoso. A
sua existência foi gradualmente modificando-se, e o seu corpo foi-se
transformando no de um insecto gigante. Apesar da
transformação, Samsa mantém-se vivo; que grande crueldade do Deus que o
condenou a insecto. Instante, todo, duração tornam-se um.
Van Gogh
também se vê num outro: o quarto com os seus objectos demasiado familiares –
ele contempla (impotente) o espírito na forma e na consistência dos materiais que
o cercam: da madeira, moldura, cama e almofada; Van Gogh é feito de espessas
camadas de tinta. Van Gogh é um
objecto. Gregor Samsa é um ser vivo. Viola é a sua imagem deformada. Van Gogh
observa-se. Gregor Samsa sente-se observado. Viola vê um reflexo directo de si.
Todos os três
temas são visões de si. Van Gogh é uma coisa inflada. Viola é um reflexo
em ferida. Samson é um outro corpo: um insecto gigante. Todas as três
imagens figuram uma aguda consciência de si. Três formas de ver o homem na sua
monstruosidade e impossibilidade existencial; três mundividências do eu.
Nuno Renato Marques
Grata pela sua leitura poética destas três obras, Nuno. Ao estabelecer um diálogo entre "textos" tão diversos é importante manter alguma distância crítica: introduza o seu propósito num momento inicial; modalize o discurso (assumindo o caráter hipotético da sua análise); procure não confundir categorias (não podemos comparar autores com personagens, como se viu tentado a fazer no caso de Gregor Samsa e dos dois artistas visuais por si escolhidos). Tomei a liberdade de editar o seu texto e de introduzir as imagens; espero ter respeitado o seu sentido criativo.
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