From Here I Saw What Happened and I Cried

Apesar de trabalhar com diferentes media, Carrie Mae Weems (EUA, 1953) é conhecida principalmente pelas suas séries fotográficas.


 Carrie Mae Weems

Na instalação From Here I Saw What Happened and I Cried (1995), a artista afro-americana mostra, não só, mas também, o papel da fotografia como meio que alimenta, muitas das vezes, o racismo, a estereotipização e a desigualdade social. 

Este projeto é composto por 33 fotografias separadas, algumas delas tiradas entre os séculos XIX e XX, encontradas por Weems em arquivos de museus e universidades americanas. Entre elas, foram encontrados daguerreótipos de escravos africanos de South Carolina, encomendados em 1850 pelo cientista naturalista suíço, Louis Agassiz (um dos pioneiros e principais defensores do racismo científico e do criacionismo no século XIX). Agassiz viajou pelos Estados Unidos da América acompanhado de um fotógrafo, com o intuito de provar a sua teoria de que os negros constituíam uma raça inferior.
Os homens e mulheres retratados nos daguerreótipos de Agassiz encontram-se, regra geral, semi ou completamente nus, e o propósito destas imagens seria o de se fazer um inventário dos diversos fenótipos entre os negros — estas imagens constituem as primeiras imagens a vermelho na sequência de Weems.


Daguerreótipo de Louis Agassiz apropriado pela artista
Quinta imagem da série

Mae Weems afirma que «quando olhamos para estas imagens, estamos a observar a maneira como a América branca [anglo-saxónica] se via em relação aos africanos e aos afro-americanos».

A artista voltou a fotografar e ampliou as fotografias que encontrara, e imprimiu-as usando filtros de duas cores  para distinguir o seu formato original. Duas delas, a primeira e a última da sequência, tingidas de azul, têm um formato retangular e, todas as outras, tingidas de vermelho, um formato circular. 


 Mulher de um chefe do povo Mangbetu (c.1920)
 Primeira imagem da série

Mulher de um chefe do povo Mangbetu (c.1920)
 Última imagem da série

A sequência começa e acaba com o retrato da mulher de um chefe do povo Mangbetu, tirado nos anos 1920 no Congo belga, por um autor desconhecido, e tingido de azul, criando a impressão de que esta figura serve de testemunha — seria ela o sujeito enunciador do título da série, From Here I Saw What Happened and I Cried — da história trágica da escravatura e da violência e opressão racistas.
Todas as outras imagens estão tingidas a vermelho, cor de sangue que simboliza a violência e a repressão operadas sobre os africanos, em especial durante a escravatura. 

A utilização do pronome «eu» nas primeira e na última imagem da sequência e o recurso ao «tu» em todas as outras também permite a distanciação entre um «eu», o da artista no presente, que olha para trás e se lamenta em relação a um passado imutável, e um «tu», dirigido ao escravo, vítima de tais atrocidades no passado.
Ao dirigir-se aos sujeitos retratados nas fotografias como «tu», o texto e a artista encorajam o espetador a reconhecer cada uma daquelas pessoas como um indivíduo em vez de um simples tipo etnográfico ou histórico. Quanto ao recurso ao pronome «tu» podemos ainda colocar a hipótese de que a artista se dirige ao espetador, provocando-o. 


«SOME SAID YOU WERE THE SPITTING IMAGE OF EVIL»
19ª imagem da série


De forma a sugestionar a forma da lente da câmara, a artista alterou o formato das imagens para um formato circular e colocou-as sob um vidro onde inscreveu texto. Tal estratégia aponta para a ideia de que também a fotografia, tirada com intenções como as que animavam o cientista suíço, pode ser uma forma de escravização e repressão, também ela redutora e opressora. 
O vidro é importante porque aponta para a fragilidade e para a condição precária da vida de um escravo. Ao mesmo tempo, o vidro permite acrescentar outra camada de sentido, mostrando que o racismo é um sentimento de grande complexidade, alojado além da superfície. O facto de o texto estar inscrito sobre o vidro, e não impresso na imagem, pode ser interpretado como o desejo de a artista criar uma barreira entre o passado, interpretável (daí as cores) mas imutável (fixação de um momento na imagem), o presente, reflexivo e crítico quanto aos eventos passados (texto), e o futuro (o espetador, espera-se). 
Weems pretende assim distanciar-se das intenções do cientista racista que, mesmo depois de todas as transformações operadas nesta série, continuam subjacentes às imagens tiradas por si. A artista espera que a estratégia de criar camadas «acrescente outro nível de humanidade e outro nível de dignidade que faltavam originalmente às fotografias».

O recurso a interjeições como o «HA» é algo ambíguo pois aponta simultaneamente para o riso («some laughed long & hard & loud») daqueles que se comprazem no pesar dos escravos, e para o sofrimento dos próprios escravos (neste caso, o «ha» poderá ser lido como interjeição de dor, em jeito de lamentação). A interjeição pode também apontar para a ironia da artista em dadas alturas do texto. 

Sobre o texto, distribuído pelas 33 imagens, Mae Weems declarou: «Estou a tentar provocar uma consciência crítica em relação à intenção com que estas fotografias foram tiradas [a intenção de servir como prova para a teoria do cientista suíço Agassiz, como já acima mencionado]». 


«YOUR RESISTANCE WAS FOUND IN THE FOOD YOU PLACED ON THE MASTER'S TABLE-HA»  
25ª imagem na sequência



 «SOME LAUGHED LONG & HARD & LOUD»
28ª imagem na série

Esta instalação de Weems oferece uma leitura contemporânea sobre uma longa, demasiado longa, época histórica, a do racismo violento face às culturas africanas. Não só reflete sobre a escravatura como também sobre o que a fomenta, como o preconceito, a estereotipização, a discriminação, a intolerância e a violência. Uma das muitas temáticas abordadas nesta peça é ainda o poder e as relações de poder; a hierarquia social: a cor e a classe são elementos fortemente presentes. 

Inserindo pessoas marginalizadas no passado em obras de arte a serem expostas num museu, a artista conta histórias que foram ignoradas, esquecidas ou apagadas e homenageia os seus protagonistas.





Centro de Arte Contemporânea de Sevilha, Espanha (2010) 
(imagem retirada do site da artista)

Para saber mais

Site da artista

    Inês Granja nº151183

Comentários

  1. Grata pela partilha desta obra tão interessante, Inês. Eu vi parte da série há uns anos e vieram-me as lágrimas aos olhos. Interessante como a obra comenta também indiretamente as políticas raciais contemporâneas do EUA, ainda imbuídas de fortes impulsos segregacionistas, como denunciado pelo Black Lives Matter.

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