Auto-retrato e Reflexão

 (90x62cm)
Fazer o auto-retrato tendo de fugir, por manifesta falta de aptidão natural, aos meios usuais disponíveis no universo das artes plásticas, pode tornar-se uma empreitada intimidante. Primeiro, porque o carácter simples e apenas denotativo que só a obra de arte permite fica comprometido logo à partida; segundo, e decorrente do primeiro, o universo em que nos vemos compelidos a penetrar, fazendo-nos representar por simbolismos, alegorias e metáforas, obriga-nos a remexer na vida e a convocar as referências. Pode ser uma viagem bonita, mas, às vezes, lá vai um tropeção na caixa de Pandora.

Toda a lembrança se sente legitimada a participar num evento destes, a arejar o odor a naftalina e, entretanto, o pobre destinatário dá consigo a duvidar do que terá sido mais ou menos marcante, o que valerá a pena relevar ou não; se encontra um bom exemplo para ilustrar determinada faceta, logo salta outra ainda melhor; quando calha persegue uma boa recordação para logo perceber que está a ser levado para fora de si próprio; quando decide parar ouve o coro de protesto das recordações que estavam lá ao fundo à espera de vez, enfim!

Comecei por pretender materializar a obra através de uma caixa cornelliana, mas apercebi-me de que as exigências da construção impediam um bom nível performativo e, principalmente, tornavam o acesso ao material disponível quantitativamente redutor. Assim, e inspirado num cartaz publicitário apanhado algures, decidi coligir de forma literal um conjunto de imagens – de músicas e músicos, de filósofos e pensadores, de escritores e artistas, de fotografias de todos os tempos da minha vida, de todas as actividades que desenvolvi, da família, de lugares e da natureza – que se constituem como os tijolos que me foram construindo. Quase sucumbindo a um curso intensivo de Photoshop ministrado em tutoriais brasileiros, organizei as imagens num mosaico de 1320 figuras (4 manchas de 330) a que apus uma fotografia entretecida na malha gráfica, como que deixando bem vincada a ideia de quão estruturantes elas foram para mim.

E quem sou eu hoje, na verdade? O mosaico não é concludente, mas sei que sou alguém que convive, não sem tormento, com o diálogo entre a razão e a emoção – diálogo demasiadas vezes surdo… às vezes ensurdecedor. Deste facto dou testemunho metafórico justapondo imagens de um coração e um cérebro, cuja relação visual a princípio pretendi dramatizar através de um diálogo expresso em tom rude e agreste. Não o concretizei porque para tal teria de saber o sentido do drama e sobre isso não consegui concluir coisa alguma, daí ter optado por interpor uma nuvem entre eles, exactamente no enfiamento do meu olhar. O seu simbolismo está, por um lado, associado à indefinição resultante da conflitualidade que referi, e por outro, à representação da pátria dos sonhos; quando há baderna vou aos meus quadradinhos e algum me há-de levar até lá.

A escolha das imagens do coração e cérebro estava a tornar-se problemática quando me lembrei da obra de Dimitri Tsykalov, autor russo nascido em 1963, incluído no programa da cadeira. Multifacetado, esculpe objectos em vários materiais, a maioria perecíveis, condição que enfatiza na leitura que faz da própria obra, onde se incluem a madeira, resíduos florestais, vegetais, frutas e carne crua e processada.

O coração é belíssimo, tem 170 cm de altura e é feito em madeira e esferovite forrado com ramos, cinza e terra; o cérebro, que não acho tão interessante, é uma couve-flor entalada entre fatias de mortadela e quejandos; escolhi-o por uma questão de coerência e porque, embora o autor tenha um cérebro do mesmo material do coração, não consegui encontrar dele uma fotografia decente.

Termino dando testemunho do quão estimulante este trabalho acabou por se tornar, porque me obrigou a descer às caves – ou a subir aos sótãos – precisamente num momento, o fim do curso, que espero poder aproveitar para fazer uns ajustes na carta de marear, porque no mar é impossível!

José Carinhas 

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