Descobrir Björk

É uma aventura escrever sobre Björk Guðmundsdóttir, especialmente quando ainda não tinha sido tocado por alguém tão singular e de tanta genialidade como ela; alguém que o juízo grotesco da cultura de massas insiste em etiquetar como rainha da pop ou estrela de rock’n roll. Uma página para pouco mais chegará do que um relancear humilde sobre a centelha de Isobel. 

Em 1997, Björk entrevistou o compositor erudito estónio Arvo Pärt, um expoente do minimalismo, e começou com esta afirmação: “eu gosto muito da sua música porque ela proporciona espaço ao ouvinte, pode viver-se dentro dela!”. 

Penso ser este o mote da personalidade de Björk, reflectir o espaço no seu processo criativo, como sinónimo da vastidão da natureza e da comunhão estruturante que o ser humano pode experienciar ao seu contacto. Numa entrevista retrospectiva a Charlie Rose, em 2001, a artista afirma que a sua felicidade depende do equilíbrio que consegue extrair do confronto entre a natureza rude e a modernidade que o progresso tecnológico disponibiliza – aproveita aqui para reiterar o amor à sua Reykjavík natal que considera, nesta matéria, um modelo. Aliás, a preocupação com as causas da natureza e da sua relação com o homem pautarão recorrentemente a sua atitude social e artística.

Retomando a alusão a “Isobel”, noto que esta tem uma dupla função. Por um lado, parece recriar-se na canção analisada, por outro reverencia Elis Regina, que Björk assume como seu alter-ego. Aduzo a argumentação em seguida. 

Segundo a explicação de Björk sobre o poema de Sigurjón Birgir Sigurdsson (aka Sjón), inspirado em mitos islandeses, Isobel é uma menina que nasceu na floresta filha não de uma mulher e de um homem, mas de uma centelha; à medida que vai crescendo os pequenos seixos que polvilham o chão da floresta vão crescendo também até que se transformam em arranha-céus de uma grande cidade onde Isobel se vê a viver. A sua criação selvagem, reagindo aos instintos e sem conhecer os protocolos da civilização leva-a ao conflito; apesar de bem-intencionadas as atitudes relativas à liberdade do corpo e à dádiva amorosa levam ao equívoco e à perturbação mental dos que a rodeiam e então, Isobel decide regressar à floresta. 

Em “All is full of love” assistimos a uma redenção de “Isobel”. Como se tivesse decidido ficar na cidade e deixar-se levar até a um futuro cibernético, onde aprendeu já que a linguagem do amor existe em todas as suas acepções e é essencial à vida. Se assim foi, Chris Cunningham mostra-nos que esse lugar a que acedemos através da escuridão para melhor absorvermos a luz que nos espera, tanto pode ser uterino, seminal como etéreo e puro. Deixo-vos três links, 1, 2 e 3, com informação útil para compreensão do propósito dos autores não esquecendo que, como obra pós-moderna que é, estará apta a desempenhar um qualquer dos papéis que a nossa imaginação lhe destine. 

De notar nas obras em apreço um paralelo de subtil narcisismo. No refrão de “Isobel” temos: “Meu nome Isobel / Casada comigo mesma / Meu amor Isobel / Vivendo por si mesma”. Em “All is full of love” a promessa de amor consuma-se em dois clones idênticos da própria autora. Penso que tal constatação não é senão um sintoma da segurança da artista em si mesma quanto aos seus ideais sociais e artísticos pensados e trabalhados desde cedo através do eclectismo das experiências acumuladas e da sua característica nordicidade quanto ao conceito de se ser feliz. 

Para a segunda função de “Isobel” cito Björk: “Acho que deve ser algo a ver com a energia com a qual ela canta. Ela tem também uma claridade no tom da voz, que é cheia de espírito. O que eu gosto em Elis é que ela cobre todo um espectro de emoções. Num momento, ela está muito feliz, parece estar no céu. Noutro, pode estar muito triste e transforma-se numa suicida!” 

A faixa “Isobel” do álbum “Post” de 1995 é dedicada à malograda cantora brasileira Elis Regina a cujas características artísticas Björk se refere com admiração na citação acima e que na minha opinião, daí o dúplice valor que lhe atribuo, não são mais que um pequeno, mas elucidativo auto-retrato. 

Não termino sem referir que os contactos com performers de expressão portuguesa não se ficam por aqui. Inserido no álbum The Iceland Mysteries de 2003 Björk canta em português uma versão de “Travessia”, de 1967, o primeiro grande êxito da carreira de Milton Nascimento e, mais recentemente em 2017, a artista aparece numa produção magistral de Raphael Bertazi, uma colagem de nome “Sambando no escuro”, em que o produtor mistura as vozes de Elza Soares a cantar “Mulher do fim do mundo”, de 2015, e de Björk a cantar “I’ve seen it all” do filme Dancer in the dark de 2000. 

Por fim, evoco a primeira subida ao éter da voz de Björk. Foi em 1975, então com 10 anos de idade, através da antena da islandesa Radio One, interpretando “I love to love (but my baby loves to dance)”.

José Carinhas

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